Crítica — Angela Seiler - Escola Pró Música, 16 de março de 2025
- Vitor Alves
- 16 de mar.
- 5 min de leitura
Singeleza e comprometimento
Singeleza e comprometimento são qualidades que surgem naturalmente e não podem ser impostas. Singeleza reflete sinceridade e simplicidade, enquanto comprometimento se traduz na dedicação a responsabilidades e causas.
Demonstrar ambas é cada vez mais raro em um mundo acelerado, onde o consumo imediato e a urgência definem o ritmo da vida.
Mesmo na música, um universo imerso em arte, essa realidade não é diferente. A lógica predominante valoriza a quantidade em detrimento da qualidade, levando muitos artistas a se perderem na luta pela sobrevivência. Reels são turbinados, stories impulsionados — e com razão, pois viver da arte exige visibilidade. Ainda assim, entre esses impulsos constantes, há momentos raros em que conseguimos escapar e simplesmente respirar.
Neste domingo (16 de março de 2025) em Campinas, cidade que está se tornando muito mais pianística em diversas frentes, a escola Pró Música realiza mais um dos concertos da sua série de recitais de 2025.
A série, coordenada pelo pianista Carlos Wiik, diretor da escola, em mais uma momento capta a atenção da cidade pela qualidade dos músicos que compõem a série. Os recitais ocorrem no auditório “Kay Brown”, local que possui uma ótima acústica e dispõe do novíssimo recém adquirido Piano de cauda da Yamaha que muito alegra o Jardim Flamboyant com sua presença.
O recital da vez é dado por Angela Seiler, pianista campineira formada pela Universidade Estadual de Campinas que vem se dedicando à performance com cada vez mais afinco.
Orientada pelo ilustre pianista e professor da UNICAMP Mauricy Martin, que neste ano celebra 40 anos de sua ininterrupta docência como professor da universidade, Angela demonstra seu comprometimento com a música da mesma maneira que seu mestre exerce com o ensinar.
Esse mesmo comprometimento, que só se dá pela sinergia entre professor e aluno, faz coisas maravilhosas com a arte e Angela Seiler continua a colher louros daquilo que é a função principal do músico: encantar os ouvintes.
A escolha da palavra encanto não é por acaso, além dela ser pianista de mão cheia, Angela é fascinada em Harry Potter, o bruxo da série de livros homônima, e comentou que assistiu a um dos filmes da saga como sendo seu “pré recital” antes de chegar ao auditório. E que recital mais encantador que esse? O repertório já declara a atmosfera que irá se instalar no público com as melhores, mais difíceis e mais mágicas obras de Beethoven, Chopin e Debussy.
Ao iniciar o recital, Angela sobe ao palco em meia luz, trajando um vestido preto elegante, e apresenta a primeira obra: a Sonata n. 27 Op. 90, de Ludwig Van Beethoven. Antes de tocar, ela conversa com a plateia, radiante com a sala lotada e sem pressa nenhuma de iniciar sua performance. A respeito de Beethoven, ela explica que essa é a primeira sonata em que o compositor escreve os andamentos das partes de sua música em alemão (na música geralmente usamos termos em italiano) como forma de tentar exprimir da melhor maneira possível o significado de sua música.
O primeiro movimento Mit Lebhaftigkeit und durchaus mit Empfindung und Ausdruck seria algo parecido como “Com vivacidade e com sentimento e expressividade em tudo” e o segundo movimento Nicht zu geschwind und sehr singbar vorgetragen como sendo “não muito rápido mas bastante cantado”. Após explicar os afetos da música, ela inicia a sonata com um temperamento muito bem ajustado às expectativas que se espera de uma sonata madura de Beethoven, e se entrega à música. Executando muito bem ambos os movimentos com bastante expressividade, a pianista compreende e apresenta a bravura e a ternura do compositor.
Seguindo Beethoven, entramos na música de Frederic Chopin, outro universo que conversa muito bem com a atmosfera deixada pela sonata. Angela principia nos contando que a música que ela irá tocar, a Barcarolle Op. 60 é uma das músicas mais intrigantes e importantes de toda a produção do compositor, que a escreveu 3 anos antes de morrer com seus 39 anos de idade. É uma obra de envergadura que serve de termômetro para exibir se o pianista detém a integridade de apresentar o que poderia ser considerada como a quinta balada de Chopin. A primeira oitava tocada, retumbante, explode em brilhos coloridíssimos que vão se dissipando como uma onda que empurra a barcarola para uma história mágica que Seiler consegue conduzir com primazia.
Saindo de Chopin, transcendemos para Claude Debussy. A escolha esperta do repertório é míster em demonstrar a evolução, mais do que cronológica em sentidos históricos, mas da sonoridade do piano que cada vez mais se emancipa. Da forma beethoveniana sólida, passa pela qualidade líquida chopiniana e entra no reino da névoa debussyana. No Debussy, os efeitos são muito mais sutis e a maneira como a plateia foi transportada até agora por esses mundos é realizada fantasticamente. Angela brinda o público com Clair de Lune, brincando como disse ser um dos “top hits” da música clássica, e realmente apresenta com uma finesse o luar impressionista do compositor francês. Tudo nesta música é muito bem escolhido e bem construído, o sentimento em cada acorde é justo e Angela parece se divertir com a possibilidade de tocar umas das mais belas composições já escritas para o piano. O público sente a profunda compenetração com que ela performou a música mais conhecida do compositor.
Por último, com a postura de alguém que está pronta para encarar um desafio, Seiler apresenta a Ballade N.1 Op. 23 de Chopin. Depois de acostumar-se com o piano e consequentemente deleitar os ouvintes com músicas muito bem interpretadas, ela se propõe a tocar a dificílima peça que é standard do piano erudito. E por sorte temos a chance de ouvir a primeira performance pública que Angela fará dessa epopéia musical!
Sentada, ela encara o piano, e apenas respira.
Durante 30 segundos sentimos a pianista se preparando para enfrentar essa maravilha de Chopin. E quando ela finalmente toca, sabemos que ela está pronta e se sai muito bem. Sem pressa em apresentar com bastante expressividade e cantabiles as emoções que o compositor na flor da idade escreveu esse conto polonês, ela enfrenta vitoriosa as armadilhas presentes na música em passagens dificílimas e em uma coda que deixa muitos pianistas com insônia. Com muito sucesso, ela finaliza a balada e é ovacionada pelo público.
O público pede bis e ela toca uma linda e divertida peça a 4 mãos Norwegian Danse Op. 35 n. 2 de Edvard Grieg, convidando o professor Martin para acompanhá-la ao piano. Após Chopin tudo virou festa e esse bis tornou o clima ainda mais alegre. Nada mais bonito do que fazer o brinde final junto ao professor, que com toda certeza esteve acompanhando muito orgulhoso o recital do começo ao fim.
A maneira que a pianista Angela Seiler tocou neste recital, serenamente e com bastante rebuscamento, apresenta essa qualidade singela com a qual ela traduziu as composições que se aprofunda. Sem buscar excessos em seu tocar, a sua simplicidade é sinônimo de qualidade sincera, fruto de um entendimento que música se faz com comprometimento e singeleza, isto é, com honestidade.








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