Crítica – Kateryna-Sofiia Shyk, piano – Instituto Raimondi, Campinas, 30 de julho de 2025
- Vitor Alves
- 1 de ago.
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Atualizado: 22 de set.
Numa quarta-feira, 30 de julho, estávamos à espreita do fim das férias de julho na cidade que se confunde em seus contrastantes polos: é interior, mas é metrópole; pacata e urbana. Nesse dia de ventos gélidos e quase cortantes, em Campinas, poderia passar despercebido o cometa musical que surge rompante no Brasil, trazendo mensagens tão importantes.
Kateryna-Sofiia Shyk é uma jovem pianista ucraniana que veio ao Brasil a convite do Festival de Inverno de Campos do Jordão para participar de masterclasses e realizar recitais na Sala São Paulo e no Colégio Mackenzie. Ela também fez recitais em Sorocaba e Mauá, através de um intenso apoio do Ministério de Relações Exteriores da Ucrânia, juntamente com o Instituto Ucraniano, que tem como missão levar a cultura ucraniana ao mundo. É uma missão importante que Kateryna carrega consigo desde o início de sua carreira como pianista em Odessa, na Ucrânia, carregando o estandarte de seus heróis, como é o caso do compositor que ela escolheu homenagear e levar seu legado adiante, Borys Lyatoshynsky (1895-1968).
A turnê da pianista se encerraria em Brasília, com um concerto marcado para 2 de agosto na Casa Thomas Jefferson. No entanto, um fortuito encontro de ideais resultou em um super recital de Kateryna em Campinas. O evento ocorreu no recém-inaugurado espaço musical do Instituto Raimondi, em uma ação tripla com a Associação Carlos Botelho, de Nova Odessa, e a Embaixada da Ucrânia no Brasil. O instituto, dirigido pela pianista e professora Gloria Raimondi e seu marido, o trompetista Islan Santos, recebeu Shyk em um evento altamente intimista, que reuniu convidados e autoridades numa noite tão elegante quanto a própria pianista.
O novo estúdio do Instituto Raimondi é um casarão acolhedor que exala música em cada um de seus tijolos. A casa fica localizada próxima ao Shopping Iguatemi e todos os seus espaços foram replanejados para aproximar a vivência cultural, prismada na música, de uma maneira bastante única, levando em consideração principalmente o acolhimento que o estúdio conseguiu. Além dos pianos Yamaha em todas as suas salas de aula, há o belíssimo piano Yamaha GC1 que se ostenta suntuoso no auditório do estúdio.
A ideia para o recital em Campinas começou no consulado da Ucrânia em Brasília. O cônsul passou a demanda para Mateus Rosa Tognella, Secretário Adjunto de Desenvolvimento Econômico e Promoção Social de Nova Odessa. Mateus viu a extraordinária oportunidade de conectar a pianista ucraniana à história de Nova Odessa — afinal, a cidade foi fundada por Carlos Botelho, que se inspirou na cidade de Odessa, na Ucrânia. Por sua vez, Mateus compartilhou a ideia com Evandro Neves, presidente da Associação Carlos Botelho. Foi Evandro quem fez o arremate final, sugerindo o Instituto Raimondi como o local ideal para unir Odessa e Nova Odessa, em um evento que celebra o intercâmbio cultural musical.
Na geladíssima noite de quarta-feira, aconteceu o recital no Instituto Raimondi. Todos os convidados*, se aqueciam com o delicioso chá servido pelos anfitriões, e logo todos foram convocados para, enfim, assentarem-se ao recital. Em meio ao burburinho que antecede o início, surge uma comitiva juntamente com a pianista. Evandro Neves prenuncia o espetáculo, que logo prossegue com falas dos anfitriões, Gloria e Islan. A pianista Kateryna é acompanhada como intérprete pelos especiais músicos Bogdan Dragan e Snizhana Drahan, ucranianos radicados em Ribeirão Preto, encaminhados pela embaixada ucraniana.
O recital inicia e Kateryna-Sofiia, trajada em lindas e adornadas vestes pretas, assim como seu cabelo e seus óculos de armação preta, ilumina e traz foco completo para sua feição e suas mãos brancas. O foco está em Sofiia e sua conexão com a música. Ela principia o recital apresentando um texto preparado em ucraniano, sua língua materna, revelando um orgulho e admiração por sua pátria ao escolher discursar nessa língua, principalmente para nos apresentar o compositor dedicatário daquela noite, Borys Lyatoshynsky.
É uma exposição detalhada e afetuosa que irá anteceder a apresentação de 4 prelúdios do compositor, um modernista da Ucrânia que amava seu país e buscou contextualizar sua história e seus folclores através de sua cultura. Snizhana traduz os ditos para português, e vamos tomando nota dos meandros da vida de Borys e da beleza que Kateryna nos apresenta. Ela evidencia a vida pessoal do compositor e sua relação amável com sua esposa, como nos episódios em que ela nos conta seus apelidos secretos que o casal se chamava, “Pequeno Gato” e “Grande Gato”, em um banquinho especial esculpido em meio à floresta encantada de sua região da Ucrânia, onde viviam. Isso demonstra o carinho e as idiossincrasias de compositores que muitas vezes não conhecemos profundamente antes de escutarmos sua obra.
Também nos é contado que Borys Lyatoshynsky, discípulo do compositor Reinhold Glière, foi além de professor do Conservatório de Kiev. Apesar de o realismo socialista ter sido quase uma obrigação para os compositores do bloco, Lyatoshynsky prosseguiu compondo ao estilo europeu, sempre referenciando seus conhecimentos do folclore ucraniano em suas composições. Após a explanação sobre o compositor, vamos ouvir as composições.
Kateryna inicia com os Prelúdios op. 38, da “Suíte Shevchenko”, compostos em 1942, em uma seleção do primeiro e terceiro prelúdio. A suíte Shevchenko apresenta elementos impressionistas mesclados a uma grande paixão ucraniana. Aliás, os prelúdios acompanham poemas de Taras Shevchenko, poeta ucraniano que Lyatoshynsky se inspirou para compor. Do primeiro prelúdio, a música evidencia o poema que o acompanha:
O sol se põe, os montes escurecem,
O passarinho silencia, o campo emudece,
As pessoas se alegram, pois vêm descansar,
Mas eu apenas olho... e o coração se lança
Ao jardim sombrio, para a Ucrânia.
De inspiração introspectiva e muito focada, Kateryna toca com exata maestria e circunspecção que esse primeiro prelúdio pede, em sua expressividade sofrida. Os intervalos musicais de quartas e quintas trazem uma sonoridade contemplativa, empregando sensações etéreas nos ouvintes. O que impressiona é o controle do timbre taciturno que a pianista emprega nesta obra, como um misto de resignação e contemplação pela noite ucraniana que o poema evoca.
A segunda peça da suíte Shevchenko escolhida pela pianista é o terceiro prelúdio, que contém um ostinato dramático que incessantemente persegue a música inteira, de maneira fatal e marcial. O controle dinâmico desse grande arco sonoro, evidenciado pelo ostinato bem controlado em moto continuo, evidencia o vigor que a pianista tem em tocar a obra de Borys. E surge, então, a sensação de que Kateryna é uma das primeiras pianistas a visitarem o Instituto Raimondi e colocarem o piano de cauda Yamaha para retumbarem os seus poderosos graves até suas últimas consequências.
O que evidencia bem o poema é a sonoridade impressionante, e por estarmos tão pertinhos do piano, ao modelo dos antigos recitais que não eram realizados em grandes teatros, longe do artista, longe da música, podemos entender o peso das palavras de Shevchenko que ressoaram com a composição de Lyatoshynsky:
E na terra renovada
Não haverá inimigo, opressor.
Mas haverá o filho,
e haverá a mãe.
E haverá pessoas sobre a terra.
Em seguida, a pianista apresenta uma obra menos contemplativa, mas reveladora do pianismo mais virtuoso do compositor ucraniano: ela apresenta uma seleção de dois Prelúdios, dessa vez da Opus 44. O quarto prelúdio desta série, é um convite a reflexão.
A mão esquerda, à maneira de uma harpa que tange as profundezas do desconhecido, enquanto a mão direita busca respostas em vão. Este prelúdio Andante Sostenuto é a própria aventura do desconhecido da vida. O cânone apresentado na obra é muito bem conduzido por Kateryna, e agora entendemos o porquê de ela estar levando adiante a vida e obra deste compositor tão fascinante.
O prelúdio n.5 Impetuoso é atacado de surpresa. Seu estilo alegre e enérgico refresca a atenção da plateia, que já imbuída dos mais profundos sentimentos das músicas anteriores, recebe a outra faceta da pianista, incandescente e precisa.
Ovacionada de pé, depois de uma brava mostra de competência e zelo por sua cultura, o público é brindado com um bis de mais 2 prelúdios de Lyatoshynski, da opus 44., formidáveis, que comprovam ainda mais a beleza estética das obras e a profundidade poética do compositor, também enfatizando as incríveis capacidades técnicas e interpretativas de Shyk.
Entre as obras escolhidas como bis, há de se destacar o terceiro prelúdio, que em movimento de toccata, em sua incessante força motriz, desperta do transe anterior instaurado pelas paisagens sonoras de Shevchenko e introduz uma sensação angustiosa de drama e suspense. Em uma virtuosidade de inúmeras oitavas, a pianista domina o estilo de piano percussivo e testa ainda mais o fôlego do Yamaha e dos ouvintes, que estão mais do que preparados para mergulhar no universo que Kateryna nos convida a conhecer da música ucraniana.
Em uma demonstração de extremo respeito entre nações, Kateryna-Sofiia Shyk finaliza o recital explicando a importância de assumir a postura de uma orgulhosa cidadã ucraniana, principalmente em tempos sombrios, pautando a indissociável guerra entre Ucrânia e Rússia que perdura no espírito do próprio recital. Ela ressaltou que a música e a arte são importantes instrumentos de relações diplomáticas que buscam o diálogo e a paz.
Elogiando Heitor Villa-Lobos, nosso compositor-mor, Kateryna-Sofiia estabelece que é através da cultura que nos fazemos vivos, isto é, lembrados e resistentes contra os males do mundo.
Relembrar e celebrar a música de Borys Lyatoshynski é uma forma de honrar a cultura da Ucrânia, mostrando que a arte é a maior ponte que podemos estabelecer entre as nações.








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