Crítica — Eduardo Freitas e Natália Spostes - Escola Pró Música, 15 de junho de 2025.
- Vitor Alves
- 15 de jun.
- 4 min de leitura
No frio que vem junto de junho, em meio às folias de São João que aquecem nossos corações festivos brasileiros, recebemos outra espécie de calor. Esse calor vem da requinta com a qual nos brinda Eduardo Freitas, clarinetista da Orquestra Sinfônica da Unicamp, e do piano com o qual Natália Spostes, badalada pianista correpetidora campineira, o acompanha neste belo e intimista recital que aconteceu na Escola Pró-Música.
Num mês em que, especialmente, temos diversos recitais envolvendo clarinetes — que em breve serão lançados por aqui ainda neste mês —, temos a grata oportunidade de escutar essa combinação de Freitas e Spostes neste 15 de junho de 2025.
Apesar do frio que nos traz a vontade de não sair do cobertor, bem-aventurados foram aqueles que não perderam a verdadeira aula que Eduardo Freitas preparou para este belo domingo campineiro.
A professora Renata Pavaneli introduz o recital, inicialmente convidando a plateia para o importante IX Concurso Nacional de Piano Pró-Música, que terá sua final no mês seguinte. Em seguida, apresenta os músicos que se apresentarão naquele fim de tarde.
Eduardo Freitas é formado em clarineta pela Unesp, tendo sido aluno do grande professor Sérgio Burgani. Natália Spostes, além de ser atualmente coordenadora do concurso de piano mencionado, foi aluna do renomado professor Mauricy Martin.
Após os aplausos à fala da apresentadora, segue-se completo silêncio em uma sala perfeitamente adequada para um recital. A plateia, iluminada por meia-luz, escuta um batuque programado para ser executado naquele ambiente, evocando nossas heranças musicais do lundu. Enquanto todos estão hipnotizados pela percussão animada,
escuta-se um grito que irrompe do fundo:
– Sai do ôco, Curruira!
O grito determinado do clarinetista chama a atenção de todos, que são saudados pela composição anunciada Sai do ôco, Curruira, do compositor Wagner Nery. Eduardo Freitas surge do fundo da plateia, solando em sua requinta, com o característico som anasalado e agudo que cai muito bem à composição, que se baseia no passarinho que dá nome à composição. Eduardo toca divertidamente, conquistando seu espaço ao caminhar por todos os cantos da plateia, até subir ao palco e finalizar esse belo chorinho batucado.
Em êxtase, depois dessa bem-executada introdução, tomamos conhecimento de que aquele recital se trata, também, de uma aula sobre o instrumento clarinete. O programa expõe as facetas de cada um dos instrumentos que Eduardo trouxe, apresentando sempre uma peça solo seguida de uma composição acompanhada ao piano.
Após breve explanação sobre a requinta, Natália Spostes é chamada ao palco para tocar com Freitas a música Arquichorinho, do compositor Alexandre Isenberg. Trata-se de um bem-humorado divertimento para requinta e piano, no qual, com elementos de choro (e alguns bem-colocados movimentos característicos do jazz), percorremos um caleidoscópio de pequenas seções alegres que celebram o instrumento, usando o chorinho como mote. Os músicos revelam claramente sua bem-elaborada sinergia, com Eduardo desfrutando de bastante liberdade para “chorar” com sua requinta, acompanhado atentamente por Natália nessa curiosa composição.
Talvez fosse interessante que o piano não estivesse completamente fechado, mas sim com a meia-cauda levantada — isso tornaria ainda mais agradável a experiência do recital. Com dois músicos habilidosos tocando juntos no auditório da Sala Kay Brown, já elogiado por sua acústica, os harmônicos gerados entre piano e clarinetes ficariam ainda mais ricos. Mas isso é apenas preciosismo, pois Eduardo e Natália trouxeram qualidades muito bem lapidadas em todas as músicas.
Após Arquichorinho, saímos do mundo da requinta e vamos para o velho conhecido clarinete em si bemol. Sendo mais grave que a requinta, seu som é mais aveludado — e muito bem tocado por Eduardo, que inicia a peça solo Polca, do compositor limeirense Pedro Alliprandini. A obra apresenta as características da polca brasileira, que, misturada ao lundu, viria a se tornar o nosso choro tradicional. Mais uma vez, a interpretação é muito bem realizada, revelando o domínio da polifonia induzida que Eduardo Freitas consegue demonstrar com grande propriedade.
Após a Polca, que arranca muitos aplausos da plateia, temos novamente Natália acompanhando Eduardo, agora na Sonatina, de Malcolm Arnold. Já no primeiro movimento, Allegro con brio, temos a chance de ouvir uma obra moderna bastante interessante dentro do recital, na qual podemos observar a liberdade com que os dois instrumentos dialogam. É também aqui que percebemos os mais refinados controles de dinâmica e respiração de Eduardo, que continuarão a nos surpreender ao longo do programa. O caráter marcial da obra está na medida certa, com as incursões dos poderosos graves do piano envolvendo com vigor a melodia do clarinete. O segundo movimento, Andantino, é um show de lirismo. O clarinete explora, com plena liberdade, sua ampla tessitura, ressoando tanto nos registros mais graves quanto nos agudos.
O terceiro movimento, Furioso, é um verdadeiro teste de precisão para ambos os músicos. É nesse último trecho que percebemos as profundas camadas de dinâmica que tornam essa escuta a mais tridimensional do recital — uma característica notável. Logo em seguida passamos a próxima peça.
Hommage à Bach, de Béla Kovács, pertence ao cânone moderno do clarinete em lá. Nesta parte, entramos em um novo registro sonoro, com o clarinete em lá — mais encorpado que o em si bemol. Eduardo toca seu instrumento evocando as qualidades timbrísticas de um violoncelo, tão presente na obra de Johann Sebastian Bach, especialmente nas Suítes para Violoncelo. A primeira nota já prende a atenção de todos: o controle de timbre é cuidadosamente planejado para esta peça, e nela podemos observar o domínio da falsa polifonia que Freitas conduz com maestria.
Seguimos para a última peça do recital, Tema e Variações, de Jean Françaix. A obra, encomendada pelo Conservatório Superior de Música de Paris, é um verdadeiro atestado de dedicação à interpretação. Spostes retorna ao palco para, mais uma vez, tocar com Eduardo, e somos privilegiados com a escuta de uma peça moderna muito bem elaborada e executada. O controle que Eduardo Freitas tem do clarinete faz com que nos divirtamos com as intenções mais puras do compositor — intenções essas que poucos intérpretes conseguem extrair. Desde as variações mais sonhadoras até as mais galhofantes e hesitantes — como na Variação 5 —, temos o deleite de uma interpretação verdadeiramente dedicada.
Como bis, que o público naturalmente pede após um recital tão belo, Eduardo e Natália retornam ao repertório brasileiro. Tocam juntos Melodia Sentimental, de Heitor Villa-Lobos. Ao final, depois de um recital desafiador e encantador que nos prendeu a atenção por completo, o frio deste domingo de junho deixa de incomodar.








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