Crítica — Cristian Budu, Sala Watari, 29 de abril de 2023.
- Vitor Alves
- 29 de abr. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 2 de jun.
Preâmbulo
Todos gostam de boa música. Portanto, não é de se estranhar que com o anúncio de grandes artistas consagrados realizando concertos x ou y, acabam se esgotando ingressos e lotando as casas de espetáculos que sediarão esses deliciosos momentos. A fórmula é simples:
1. O artista realiza suas incríveis façanhas;
2. agrada aos ouvidos e gostos tanto do público leigo quanto do público diletante;
3. o público e artista, satisfeitos, encerram a noite e vão para seus lares.
É natural.
No encerramento do concerto, podemos escutar as generalidades nos corredores de táxi:
— Eu simplesmente achei maravilhosa a interpretação dele daquele Schumann.
— A paleta de cores harmônica estava mais à maneira de Eusebius do que Florestan…
Concerto impecável, técnica bem precisa.
Foi um ótimo final de semana.
Mas existem momentos raros
em que o protocolar concerto perfeito transcende as escutas normativas e adquire um novo patamar de experiência sensorial para o público…
Cristian Budu, o pianista, dispensa apresentações.
Com sua performance avassaladora e seu carisma, conquista os mais diversos tipos de ouvintes e sempre sai bem sucedido no que se propõe a apresentar.
Em 29 de Abril de 2023.
Ele toca mais um concerto realizado na fantástica Sala Watari, um auditório intimista localizado no interior de Barão Geraldo, distrito de Campinas, com a curadoria especial do pianista Mauricy Martin.
Cristian, já de casa, sempre retornando, lota o espaço, pois o público já o conhece e sempre anseia por seu retorno.
Geralmente são 3 fileiras de cadeira, à direita e à esquerda, permitindo um amplo corredor que desemboca ao poderoso piano de cauda Yamaha CFX. Naquele dia, foram 4 fileiras em cada canto.
O pianista teria de se esgueirar tão próximo ao público para chegar ao piano que essa imagem poderia transmitir a sensação de um teste psicológico: mas não para Cristian.

O burburinho termômetro dos abrasileirados atrasos que costumam ocorrer nas apresentações é tempero. Chegando ao ponto de efervescência, as luzes se apagam e todos se asilenciam. Cristian Budu, all suited in black, atravessa do fim da sala e rompe os 20 metros de público cativo.
Absolutamente quieto, no finalizar dos aplausos imediatamente, Budu inicia a Fantasia em Do maior, de CPE Bach. Cheia de trejeitos que apenas alguém profundamente conectado com a obra consegue extrair sua comicidade, realiza performance surpreendente.
Segue com a Sonata opus 109 de Beethoven, demonstrando o domínio do temperamento beethoveniano do romancismo que perpassa suas músicas. A capacidade com que Cristian consegue dominar o espaço acústico do ambiente é extraordinária, do mais pianissíssimo ao fortissíssimo, todos se maravilham.
A riqueza na sonoridade evocada naquela noite é tão profunda em cada momento dos movimentos da sonata que é possível distinguir os papéis individuais de cada voz que Budu conduz com maestria. Mas o principal ainda estava por vir.
No finalizar do terceiro movimento o Andante molto cantabile ed espressivo totalmente compenetrado após a performance de música tão carregada de emoção. Cristian segue para a última obra da primeira parte do concerto.
A Polonese Fantasia de Chopin apresentada transtorna o emocional de todos os ouvintes. A angústia que sofria o compositor é transmitida por Budu quase que numa psicografia musical, a fantasia polonese que em momentos parece fugir do próprio tonalismo dada a genialidade de Chopin consegue tirar o fôlego de quem escuta. Naquele momento já não era mais um recital num belo sábado a noite, era um marco na estética de cada um que teve privilégio de escutar o músico e a obra.

Ovacionado pelo público após o Chopin. É o fim da primeira parte.
Cristian vai para a batcaverna dos intérpretes da casa para beber uma água.
Retira suas vestes tradicionais de performer e coloca roupas mais confortáveis. Parece que a escolha estética se reflete na própria programação, a primeira parte sendo de compositores europeus. Agora chegamos na segunda parte, latina.
Termina a persona Rubinstein, Zimmermann e Gould e entra o rapaz de Diadema. Conversa com todos. A sobriedade que requer Chopin, Beethoven e Bach (CPE) já pode ser guardada. Agora estamos com Ginastera, Villa-Lobos e Granados, mais ao nosso mundo. (Sim, Granados também!).
Converso um pouco com o pianista. Eu ainda estava mesmerizado com o espetáculo e percebo que estou atravancando o resto do show, Cristian percebe também e sai correndo pro palco como se fosse cobrar o pênalti.
Seguem-se joias musicais da mais alta estirpe. Com as 8 valsas poéticas de Granados, Cristian com uma simplicidade a la Nelson Freire apresenta o repertório com elegância e vigor.
Em Ginastera, segue-se parecida a estética de Granado, mas muito mais moderna. Nosso parceiro hermano que apresenta características semelhantes a Villa-Lobos é muito bem interpretado em seus ritmos dançantes e hipnóticos. Nas 3 Danças Argentinas, a terceira Danza del gaucho matrero, Cristian evoca o espírito da época: é barulhento, é forte, é sujo, é percussivo e delicioso, é festa na cidade!
Para coroar, o xodó fica para o final, Villa-Lobos e seu Ciclo Brasileiro é apresentado em uma seleção que, sinceramente, escolhe as melhores obras da suíte. Aqui está o ponto alto da noite, juntamente com o Chopin. Cristian toca Impressões Seresteiras e adiciona pessoalmente a sua interpretação um rubato que jamais foi tentado por outros pianistas. Não é mais piano, Budu está tocando violão à moda das serestas de Catullo da Paixão Cearense. As baixarias e os deslocamentos de tempo que foram realizados evidenciam o minucioso trabalho que o pianista teve para elevar Villa-Lobos a outro patamar de interpretação.
A Festa no Sertão é clássica, Budu toca como mais ninguém. Muito pedal, pouco pedal, muito rubato, pouco rubato, contraditória assim como o compositor escreveu e Cristian entendeu. A obra já virou seu cavalo de guerra e encerra a noite com esplendor…
Mas o público quer mais. Com o bis mais imediato do universo. Com o público sedento por mais virtuosidades acrobáticas pianísticas.
Budu faz a coisa mais singela do mundo e sugere outra escuta. Apresenta a pecinha mais delicada de Camargo Guarnieri, brotada do estrondo que Villa-Lobos deixou na música brasileira. Com o Ponteio n°45, que só alguém com filho conceberia, subverte a expectativa de todos com uma profunda impressão sertaneja paulistana. Seria o mais perfeito encerramento. Mas o público quis mais e Budu os presenteou com seu personalizádissimo Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth. De minha parte, achei um crime o público pedir mais depois do Ponteio, mas não dá pra negar que quando temos a chance de escutar um pianista desses, não podemos desperdiçar nenhum momento.

Codetta
Em uma anedota, como ele mesmo já disse uma vez a um estudante em uma masterclass: “Eu estou te pedindo pra fazer isso [gesto no piano], mas eu não faço assim porque eu toco tudo meio errado, não segue meu exemplo não”.
Cristian Budu trata o piano com simplicidade: ele o toca. Não existe nada além disso.
Por isso é gênio.







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